Luís Represas, in Utopia, Um deste dias, Trovante
Parti já tão longe de pensar se vivemos num lado ou noutro
Parti com a esperança no olhar que lançaste como quem já tem porto
Onde encostar o barco
Onde beijar a praia que sonhaste
Parti numa altura em que as ideias me faziam confusão
Parti quando as ideias se confundem com o poder do coração
Cidades sem muros nem ameias
Cantei de todas as maneiras
Mas não senti se a Utopia existe
Ou se foi mania minha
Mas o sol já vai alto
E a lua já foi dormir
E assim
Conta-me tu o fim
Pensa bem
Se a Utopia não vivesse
Dentro da alma
Não sentia
A vontade
De viver tempos tão reais
que nos pareciam anormais
E doi vivê-los sem ti
Já vi gente igual por dentro e fora
Já vi gente de cores diferentes
Sentir que é igual por dentro e fora
Sem deixar de ser diferente
Cidades sem muros nem ameias
Cantei de todas as maneiras
Mas não senti se a Utopia existe
Ou se foi mania minha
Mas o sol já vai alto
E a lua já foi dormir
E assim
Conta-me tu o fim
Pensa bem
Se a Utopia não vivesse
Dentro da alma
Não sentia
A vontade
De viver tempos tão reais
que nos pareciam anormais
E doi vivê-los sem ti
Letra e Música: Zeca Afonso Intérprete: Fernando Lacerda
Baía de Guanabara
Santa Cruz na fortaleza
Está preso Alípio de Freitas
Homem de grande firmeza
Em Maio de mil setenta
Numa casa clandestina
Com companheira e a filha
Caiu nas garras da CIA
Diz Alípio à nossa gente:
"Quero que saibam aí
Que no Brasil já morreram
Na tortura mais de mil
Ao lado dos explorados
No combate à opressão
Não me importa que me matem
Outros amigos virão"
Lá no sertão nordestino
Terra de tanta pobreza
Com Francisco Julião
Forma as ligas camponesas
Na prisão de Tiradentes
Depois da greve da fome
Em mais de cinco masmorras
Não há tortura que o dome
Fascistas da mesma igualha
(Ao tempo Carlos Lacerda)
Sabei que o povo não falha
Seja aqui ou outra terra
Em Santa Cruz há um monstro
(Só não vê quem não tem vista
Deu sete voltas à terra
Chamaram-lhe imperialista
Baía da Guanabara
Santa Cruz na fortaleza
Está preso Alípio de Freitas
Homem de grande firmeza
Na Rua António Maria
 
da primaz instituição
 
vive a maior confraria
 
desta válida nação 
E muita matula brava
 
ainda teimava
 
que havia de vir
 
um dia assim de repente
 
para toda a gente
 
voltar a sorrir 
Mas eles Conceição vão
 
lamber as botas
 
comer à mão
 
dum novo Pina Manique
 
com outra lábia
 
com outro tique 
Tem quatro letras pequenas
 
Mas outro nome não dão
 
Nesta fortaleza antiga
 
Só não muda a guarnição 
E muita matula ufana
 
cuidando que a mana
 
morrera de vez
 
deu graças
 
à D. Urraca
 
ao som da ressaca
 
que o pagode fez 
Mas eles Conceição vão
 
lamber as botas
 
comer à mão
 
dum novo Pina Manique
 
com outra lábia
 
com outro tique
 
Na Rua António Maria
 
convenha a todos saber
 
a patriótica espia
 
sabe bem onde morder
 
vela p´la nossa morada
 
no vão de uma escada 
Sem se anunciar
 
e oferece a quem bem destina
 
um quarto de esquina
 
com vistas pró mar 
Mas eles Conceição vão
 
lamber as botas
 
comer à mão
 
dum novo Pina Manique
 
com outra lábia
 
com outro tique 
Aldeia da roupa branca
 
suja de já não corar
 
O Zé Povo foi pra França
 
não se cansa de esperar 
O capataz da fazenda
 
pôs a quinta à venda
 
para quem mais der
 
e os donos marcaram tentos
 
com novos intentos
 
doa a quem doer 
Mas eles Conceição vão
 
lamber as botas
 
comer à mão
 
dum novo Pina Manique
 
com outra lábia
 
com outro tique
A morte saiu à rua num dia assim
 
Naquele lugar sem nome pra qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
 
E um rio de sangue dum peito aberto sai 
O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte o pintor morreu
Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
Só olho por olho e dente por dente vale
À lei assassina à morte que te matou
Teu corpo pertence à terra que te abraçou
Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que um dia rirá melhor quem rirá por fim
Na curva da estrada há covas feitas no chão
E em todas florirão rosas duma nação
Vai terminar esta prosa
 
Estamos na década de Salomé
 
Será o Apocalipse ou a torneira
 
a pingar no bidé? 
É meio dia dia de feira
 
mensal em Vila Nogueira
 
Estamos na década do bricolage
 
Diz o jornal que um emigra
 
morreu afogado em Mira
 
Antes da data
 
Do mariage
Estamos na Europa
 
civilizada
 
já cá faltava
 
uma maison
 
pour la patrie
 
p´lo Volkswagen
 
acabou-se a forragem
 
viva o patron!
Já tem destino esta terra
 
vamos mudar para o marché aux puces
 
o tempo das ceroilas está no fio
 
agora só de trousses.
É meio dia dia de feira
 
mensal em Vila Nogueira
 
Estamos na década do bricolage
 
Diz o jornal que um emigra
 
morreu afogado em Mira
 
Antes da data
 
Do mariage.
Saem quarenta mil ovos moles
 
Vilar Formoso
 
é logo ali
 
faz-se um enxerto
 
com mijo de gato
 
Sola de sapato
 
voilá Paris!
Aos grandes supermercados
 
chega cultura num bi-camion
 
Camões e Eça vendem-se enlatados
 
lavados com «champon»
É meio dia dia de feira
 
mensal em Vila Nogueira
 
Estamos na década do bricolage
 
Diz o jornal que um emigra
 
morreu afogado em Mira
 
Antes da data
 
Do mariage
Estamos na Europa
 
radarizada
 
já cá faltava
 
uma turquês
 
para o controle
 
do bravo e do manso
 
vivaço e do tanso
 
em cada mês!
A fina flor do entulho
 
largou o pêlo ganhou verniz
 
Será o Christian Dior o manajeiro
 
a mandar no país?
Estamos da Europa
 
do «estou-me nas tintas»
 
nada de colectivismos
 
chacun por si, meu
 
e chcaun por soi
 
tê vê e cama
 
depois da esgaça
 
até que lhes dê a traça
 
a culpa é toda
 
do erre Hagá.
Levam-te à caça
 
dos gambuzinos
 
com dois ouriços
 
em cada mão
 
ai velha fibra
 
do bairro de Alfama
 
a carcaça do Gama
 
vai a leilão!
Agora a vinha é doce
 
Em vinha d´alhos 
Agora a frívola foi-se
 
O matutino
Agora a vírgula vai-se
 
A virgindade
Agora a quinta descanta
 
A mocidade
Agora a a pérola não
 
Se vai embora
Agora vai a filha
 
E vai a sogra
Agora não cheirava
 
A rosmaninho
Agora o Bento está
 
Mesmo sozinho
Agora pinta a chuva
 
Na goteira
Agora a filha já
 
Não tem papeira
Agora rima o novo
 
Rumo ao velho
Agora sabe bem
 
Este sossego
Venham mais cinco, duma assentada que eu pago já
 
Do branco ou tinto, se o velho estica eu fico por cá
 
Se tem má pinta, dá-lhe um apito e põe-no a andar
 
De espada à cinta, já crê que é rei d'aquém e além-mar
Não me obriguem a vir para a rua
Gritar
Que é já tempo d' embalar a trouxa
E zarpar
A gente ajuda, havemos de ser mais
Eu bem sei
Mas há quem queira, deitar abaixo
O que eu levantei
A bucha é dura, mais dura é a razão
Que a sustem só nesta rusga
Não há lugar prós filhos da mãe
Não me obriguem a vir para a rua
Gritar
Que é já tempo d' embalar a trouxa
E zarpar
Bem me diziam, bem me avisavam
Como era a lei
Na minha terra, quem trepa
No coqueiro é o rei
A bucha é dura, mais dura é a razão
Que a sustem só nesta rusga
Não há lugar prós filhos da mãe
Não me obriguem a vir para a rua
Gritar
Que é já tempo d' embalar a trouxa
E zarpar
Ficheiro mp3, cc201.mp3. O Zeca nos Cantos da Casa.
Aldeia da Meia-Praia
Ali mesmo ao pé de Lagos
Vou fazer-te uma cantiga
Da melhor que sei e faço
De Monte-Gordo vieram
Alguns por seu próprio pé
Um chegou de bicicleta
Outro foi de marcha a ré
Houve até quem estendesse
A mao a mae caridade
Para comprar um bilhete
De paragem para a cidade
Oh mar que tanto forcejas
Pescador de peixe ingrato
Trabalhaste noite e dia
Para ganhares um pataco
Quando os teus olhos tropeçam
No voo duma gaivota
Em vez de peixe vê peças
De ouro caindo na lota
Quem aqui vier morar
Nao traga mesa nem cama
Com sete palmos de terra
Se constrói uma cabana
Uma cabana de colmo
E viva a comunidade
Quando a gente está unida
Tudo se faz de vontade
Tudo se faz de vontade
Mas nao chega a nossa voz
Só do mar tem o proveito
Quem se aproveita de nós
Tu trabalhas todo o ano
Na lota deixam-te mudo
Chupam-te até ao tutano
Chupam-te o couro cab'ludo
Quem dera que a gente tenha
De Agostinho a valentia
Para alimentar a sanha
De esganar a burguesia
Diz o amigo no aperto
Pouco ganho, muita léria
Hei-de fazer uma casa
Feita de pau e de pedra
Adeus disse a Monte-Gordo
(Nada o prende ao mal passado)
Mas nada o prende ao presente
Se só ele é o enganado
Foram "ficando ficando"
Quando um dia um cidadao
Nao sei nem como nem quando
Veio à baila a habitaçao
Mas quem tem calos no rabo
- E isto nao é segredo -
É sempre desconfiado
Poe-se atrás do arvoredo
Oito mil horas contadas
Laboraram a preceito
Até que veio o primeiro
Documento autenticado
Veio um cheque pelo correio
E alguns pedreiros amigos
Disse o pescador consigo
Só quem trabalha é honrado
Quem aqui vier morar
Nao traga mesa nem cama
Com sete palmos de terra
Se constrói uma cabana
Eram mulheres e crianças
Cada um c'o seu tijolo
"Isto aqui era uma orquestra"
Quem diz o contrário é tolo
E toda a gente interessada
Colabarou a preceito
- Vamos trabalhar a eito
Dizia a rapaziada
Nao basta pregar um prego
Para ter um bairro novo
Só "unidos venceremos"
Reza um ditado do Povo
E se a má lingua nao cessa
Eu daqui vivo nao saia
Pois nada apaga a nobreza
Dos índios da Meia-Praia
Quem vê na praia o turista
Para jogar na roleta
Vestir a casaca preta
Do malfrao1 capitalista
Foi sempre a tua figura
Tubarao de mil aparas
Deixar tudo à dependura
Quando na presa reparas
Das eleiçoes acabadas
Do resultado previsto
Saiu o que tendes visto
Muitas obras embargadas
Mas nao por vontade própria
Porque a luta continua
Pois é dele a sua história
E o povo saiu à rua
Mandadores de alta finança
Fazem tudo andar pra trás
Dizem que o mundo só anda
Tendo à frente um capataz
E toca de papelada
No vaivém dos ministérios
Mas hao-de fugir aos berros
Inda a banda vai na estrada
Eram mulheres e crianças
Cada um c'o seu tijolo
"Isto aqui era uma orquestra"
Quem diz o contrário é tolo
* Texto e musica para o filme: Índios da Meia Praia, realizado por Cunha Teles.
A versão do disco não inclui todas as quadras.
1 Palavra algarvia que significa dinheiro.
Que amor nao me engana
Com a sua brandura
Se da antiga chama
Mal vive a amargura
Duma mancha negra
Duma pedra fria
Que amor nao se entrega
Na noite vazia?
E as vozes embarcam
Num silêncio aflito
Quanto mais se apartam
Mais se ouve o seu grito
Muito à flor das àguas
Noite marinheira
Vem devagarinho
Para a minha beira
Em novas coutadas
Junta de uma hera
Nascem flores vermelhas
Pela Primavera
Assim tu souberas
Irma cotovia
Dizer-me se esperas
Pelo nascer do dia
Foram-se os bandos dos chacais
 
Chegou a vez dos tribunais
 
Vão reunir o bom e o mau ladrão
 
Para votar sobre um caixão
 
Quando o inocente se abateu
 
Inda o morto não morreu
 
Quando o inocente se abateu
 
Inda o morto não morreu 
A decisão do tribunal
 
É como a sombra do punhal
 
Vamos matar o justo que ali jaz
 
Para quem julga tanto faz
 
Já que o punhal não mata bem
 
A lei matemos também
 
Já que o punhal não mata bem
 
A lei matemos também
Soa o clarim soa o tambor
 
O morto já não sente a dor
 
Quando o deserto nada tem a dar
 
Vêm as águias almoçar
 
O tribunal dá de comer
 
Venham assassinos ver
 
O tribunal dá de comer
 
Venham assassinos ver
Se o criminoso se escondeu
 
Nada de novo acoteceu
 
A recompensa ao punho que matou
 
Uma fortuna a quem roubou
 
Guarda o teu roubo guarda-o bem
 
Dentro de um papel a lei
A formiga no carreiro
vinha em sentido contrário
Caiu ao Tejo
ao pé de um septuagenário
Lerpou trepou às tábuas (bis)
que flutuavam nas águas (bis)
e do cimo de uma delas
virou-se para o formigueiro
mudem de rumo (bis)
já lá vem outro carreiro 
A formiga no carreiro
vinha em sentido diferente
caiu à rua
no meio de toda a gente
buliu abriu as gâmbeas
para trepar às varandas
e do cimo de uma delas
...
A formiga no carreiro
andava à roda da vida
caiu em cima
de uma espinhela caída
furou furou à brava
numa cova que ali estava
e do cimo de uma delas
Eu fui ver a minha amada
Lá p'rós baixos dum jardim
Dei-lhe uma rosa encarnada
Para se lembrar de mim
Eu fui ver o meu benzinho
Lá p'rós lados dum passal
Dei-lhe o meu lenço de linho
Que é do mais fino bragal
Minha mãe quando eu morrer
Ai chore por quem muito amargou
Para então dizer ao mundo
Ai Deus mo deu Ai Deus mo levou
Eu fui ver uma donzela
Numa barquinha a dormir
Dei-lhe uma colcha de seda
Para nela se cobrir
Eu fui ver uma solteira
Numa salinha a fiar
Dei-lhe uma rosa vermelha
Para de mim se encantar
Minha mãe quando eu morrer
Ai chore por quem muito amargou
Para então dizer ao mundo
Ai Deus mo deu Ai Deus mo levou
Eu fui ver a minha amada
Lá nos campos eu fui ver
Dei-lhe uma rosa encarnada
Para de mim se prender
Verdes prados, verdes campos
Onde está minha paixão
As andorinhas não param
Umas voltam outras não
Minha mãe quando eu morrer
Ai chore por quem muito amargou
Para então dizer ao mundo
Ai Deus mo deu Ai Deus mo levou

Comentários
Enviar um comentário