Zeca Afonso morreu há 30 anos

E dói vivê-los sem ti
Luís Represas, in Utopia, Um deste dias, Trovante

Parti já tão longe de pensar se vivemos num lado ou noutro
Parti com a esperança no olhar que lançaste como quem já tem porto
Onde encostar o barco
Onde beijar a praia que sonhaste

Parti numa altura em que as ideias me faziam confusão
Parti quando as ideias se confundem com o poder do coração

Cidades sem muros nem ameias
Cantei de todas as maneiras
Mas não senti se a Utopia existe
Ou se foi mania minha

Mas o sol já vai alto
E a lua já foi dormir
E assim
Conta-me tu o fim

Pensa bem
Se a Utopia não vivesse
Dentro da alma
Não sentia
A vontade
De viver tempos tão reais
que nos pareciam anormais
E doi vivê-los sem ti

Já vi gente igual por dentro e fora
Já vi gente de cores diferentes
Sentir que é igual por dentro e fora
Sem deixar de ser diferente

Cidades sem muros nem ameias
Cantei de todas as maneiras
Mas não senti se a Utopia existe
Ou se foi mania minha

Mas o sol já vai alto
E a lua já foi dormir
E assim
Conta-me tu o fim

Pensa bem
Se a Utopia não vivesse
Dentro da alma
Não sentia
A vontade
De viver tempos tão reais
que nos pareciam anormais
E doi vivê-los sem ti

Letra e Música: Zeca Afonso Intérprete: Fernando Lacerda

Baía de Guanabara
Santa Cruz na fortaleza
Está preso Alípio de Freitas
Homem de grande firmeza
Em Maio de mil setenta
Numa casa clandestina
Com companheira e a filha
Caiu nas garras da CIA
Diz Alípio à nossa gente:
"Quero que saibam aí
Que no Brasil já morreram
Na tortura mais de mil
Ao lado dos explorados
No combate à opressão
Não me importa que me matem
Outros amigos virão"
Lá no sertão nordestino
Terra de tanta pobreza
Com Francisco Julião
Forma as ligas camponesas

Na prisão de Tiradentes
Depois da greve da fome
Em mais de cinco masmorras
Não há tortura que o dome
Fascistas da mesma igualha
(Ao tempo Carlos Lacerda)
Sabei que o povo não falha
Seja aqui ou outra terra
Em Santa Cruz há um monstro
(Só não vê quem não tem vista
Deu sete voltas à terra
Chamaram-lhe imperialista
Baía da Guanabara
Santa Cruz na fortaleza
Está preso Alípio de Freitas
Homem de grande firmeza

Na Rua António Maria
da primaz instituição
vive a maior confraria
desta válida nação

E muita matula brava
ainda teimava
que havia de vir
um dia assim de repente
para toda a gente
voltar a sorrir

Mas eles Conceição vão
lamber as botas
comer à mão
dum novo Pina Manique
com outra lábia
com outro tique

Tem quatro letras pequenas
Mas outro nome não dão
Nesta fortaleza antiga
Só não muda a guarnição

E muita matula ufana
cuidando que a mana
morrera de vez
deu graças
à D. Urraca
ao som da ressaca
que o pagode fez

Mas eles Conceição vão
lamber as botas
comer à mão
dum novo Pina Manique
com outra lábia
com outro tique
Na Rua António Maria
convenha a todos saber
a patriótica espia
sabe bem onde morder
vela p´la nossa morada
no vão de uma escada

Sem se anunciar
e oferece a quem bem destina
um quarto de esquina
com vistas pró mar

Mas eles Conceição vão
lamber as botas
comer à mão
dum novo Pina Manique
com outra lábia
com outro tique

Aldeia da roupa branca
suja de já não corar
O Zé Povo foi pra França
não se cansa de esperar

O capataz da fazenda
pôs a quinta à venda
para quem mais der
e os donos marcaram tentos
com novos intentos
doa a quem doer

Mas eles Conceição vão
lamber as botas
comer à mão
dum novo Pina Manique
com outra lábia
com outro tique

A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome pra qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue dum peito aberto sai

O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte o pintor morreu

Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
Só olho por olho e dente por dente vale
À lei assassina à morte que te matou
Teu corpo pertence à terra que te abraçou

Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que um dia rirá melhor quem rirá por fim
Na curva da estrada há covas feitas no chão
E em todas florirão rosas duma nação

Vai terminar esta prosa
Estamos na década de Salomé
Será o Apocalipse ou a torneira
a pingar no bidé?

É meio dia dia de feira
mensal em Vila Nogueira
Estamos na década do bricolage
Diz o jornal que um emigra
morreu afogado em Mira
Antes da data
Do mariage

Estamos na Europa
civilizada
já cá faltava
uma maison
pour la patrie
p´lo Volkswagen
acabou-se a forragem
viva o patron!

Já tem destino esta terra
vamos mudar para o marché aux puces
o tempo das ceroilas está no fio
agora só de trousses.

É meio dia dia de feira
mensal em Vila Nogueira
Estamos na década do bricolage
Diz o jornal que um emigra
morreu afogado em Mira
Antes da data
Do mariage.

Saem quarenta mil ovos moles
Vilar Formoso
é logo ali
faz-se um enxerto
com mijo de gato
Sola de sapato
voilá Paris!

Aos grandes supermercados
chega cultura num bi-camion
Camões e Eça vendem-se enlatados
lavados com «champon»

É meio dia dia de feira
mensal em Vila Nogueira
Estamos na década do bricolage
Diz o jornal que um emigra
morreu afogado em Mira
Antes da data
Do mariage

Estamos na Europa
radarizada
já cá faltava
uma turquês
para o controle
do bravo e do manso
vivaço e do tanso
em cada mês!

A fina flor do entulho
largou o pêlo ganhou verniz
Será o Christian Dior o manajeiro
a mandar no país?

Estamos da Europa
do «estou-me nas tintas»
nada de colectivismos
chacun por si, meu
e chcaun por soi
tê vê e cama
depois da esgaça
até que lhes dê a traça
a culpa é toda
do erre Hagá.

Levam-te à caça
dos gambuzinos
com dois ouriços
em cada mão
ai velha fibra
do bairro de Alfama
a carcaça do Gama
vai a leilão!

Agora a vinha é doce
Em vinha d´alhos

Agora a frívola foi-se
O matutino

Agora a vírgula vai-se
A virgindade

Agora a quinta descanta
A mocidade

Agora a a pérola não
Se vai embora

Agora vai a filha
E vai a sogra

Agora não cheirava
A rosmaninho

Agora o Bento está
Mesmo sozinho

Agora pinta a chuva
Na goteira

Agora a filha já
Não tem papeira

Agora rima o novo
Rumo ao velho

Agora sabe bem
Este sossego

Venham mais cinco, duma assentada que eu pago já
Do branco ou tinto, se o velho estica eu fico por cá
Se tem má pinta, dá-lhe um apito e põe-no a andar
De espada à cinta, já crê que é rei d'aquém e além-mar

Não me obriguem a vir para a rua
Gritar
Que é já tempo d' embalar a trouxa
E zarpar

A gente ajuda, havemos de ser mais
Eu bem sei
Mas há quem queira, deitar abaixo
O que eu levantei

A bucha é dura, mais dura é a razão
Que a sustem só nesta rusga
Não há lugar prós filhos da mãe

Não me obriguem a vir para a rua
Gritar
Que é já tempo d' embalar a trouxa
E zarpar

Bem me diziam, bem me avisavam
Como era a lei
Na minha terra, quem trepa
No coqueiro é o rei

A bucha é dura, mais dura é a razão
Que a sustem só nesta rusga
Não há lugar prós filhos da mãe

Não me obriguem a vir para a rua
Gritar
Que é já tempo d' embalar a trouxa
E zarpar

Ficheiro mp3, cc201.mp3. O Zeca nos Cantos da Casa.

Aldeia da Meia-Praia
Ali mesmo ao pé de Lagos
Vou fazer-te uma cantiga
Da melhor que sei e faço
De Monte-Gordo vieram
Alguns por seu próprio pé
Um chegou de bicicleta
Outro foi de marcha a ré
Houve até quem estendesse
A mao a mae caridade
Para comprar um bilhete
De paragem para a cidade
Oh mar que tanto forcejas
Pescador de peixe ingrato
Trabalhaste noite e dia
Para ganhares um pataco
Quando os teus olhos tropeçam
No voo duma gaivota
Em vez de peixe vê peças
De ouro caindo na lota
Quem aqui vier morar
Nao traga mesa nem cama
Com sete palmos de terra
Se constrói uma cabana
Uma cabana de colmo
E viva a comunidade
Quando a gente está unida
Tudo se faz de vontade
Tudo se faz de vontade
Mas nao chega a nossa voz
Só do mar tem o proveito
Quem se aproveita de nós
Tu trabalhas todo o ano
Na lota deixam-te mudo
Chupam-te até ao tutano
Chupam-te o couro cab'ludo
Quem dera que a gente tenha
De Agostinho a valentia
Para alimentar a sanha
De esganar a burguesia
Diz o amigo no aperto
Pouco ganho, muita léria
Hei-de fazer uma casa
Feita de pau e de pedra
Adeus disse a Monte-Gordo
(Nada o prende ao mal passado)
Mas nada o prende ao presente
Se só ele é o enganado
Foram "ficando ficando"
Quando um dia um cidadao
Nao sei nem como nem quando
Veio à baila a habitaçao
Mas quem tem calos no rabo
- E isto nao é segredo -
É sempre desconfiado
Poe-se atrás do arvoredo
Oito mil horas contadas
Laboraram a preceito
Até que veio o primeiro

Documento autenticado
Veio um cheque pelo correio
E alguns pedreiros amigos
Disse o pescador consigo
Só quem trabalha é honrado
Quem aqui vier morar
Nao traga mesa nem cama
Com sete palmos de terra
Se constrói uma cabana
Eram mulheres e crianças
Cada um c'o seu tijolo
"Isto aqui era uma orquestra"
Quem diz o contrário é tolo
E toda a gente interessada
Colabarou a preceito
- Vamos trabalhar a eito
Dizia a rapaziada
Nao basta pregar um prego
Para ter um bairro novo
Só "unidos venceremos"
Reza um ditado do Povo
E se a má lingua nao cessa
Eu daqui vivo nao saia
Pois nada apaga a nobreza
Dos índios da Meia-Praia
Quem vê na praia o turista
Para jogar na roleta
Vestir a casaca preta
Do malfrao1 capitalista
Foi sempre a tua figura
Tubarao de mil aparas
Deixar tudo à dependura
Quando na presa reparas
Das eleiçoes acabadas
Do resultado previsto
Saiu o que tendes visto
Muitas obras embargadas
Mas nao por vontade própria
Porque a luta continua
Pois é dele a sua história
E o povo saiu à rua
Mandadores de alta finança
Fazem tudo andar pra trás
Dizem que o mundo só anda
Tendo à frente um capataz
E toca de papelada
No vaivém dos ministérios
Mas hao-de fugir aos berros
Inda a banda vai na estrada
Eram mulheres e crianças
Cada um c'o seu tijolo
"Isto aqui era uma orquestra"
Quem diz o contrário é tolo

* Texto e musica para o filme: Índios da Meia Praia, realizado por Cunha Teles.
A versão do disco não inclui todas as quadras.
1 Palavra algarvia que significa dinheiro.

Que amor nao me engana
Com a sua brandura
Se da antiga chama
Mal vive a amargura
Duma mancha negra
Duma pedra fria
Que amor nao se entrega
Na noite vazia?
E as vozes embarcam
Num silêncio aflito
Quanto mais se apartam
Mais se ouve o seu grito
Muito à flor das àguas
Noite marinheira

Vem devagarinho
Para a minha beira
Em novas coutadas
Junta de uma hera
Nascem flores vermelhas
Pela Primavera
Assim tu souberas
Irma cotovia
Dizer-me se esperas
Pelo nascer do dia

Foram-se os bandos dos chacais
Chegou a vez dos tribunais
Vão reunir o bom e o mau ladrão
Para votar sobre um caixão
Quando o inocente se abateu
Inda o morto não morreu
Quando o inocente se abateu
Inda o morto não morreu

A decisão do tribunal
É como a sombra do punhal
Vamos matar o justo que ali jaz
Para quem julga tanto faz
Já que o punhal não mata bem
A lei matemos também
Já que o punhal não mata bem
A lei matemos também

Soa o clarim soa o tambor
O morto já não sente a dor
Quando o deserto nada tem a dar
Vêm as águias almoçar
O tribunal dá de comer
Venham assassinos ver
O tribunal dá de comer
Venham assassinos ver

Se o criminoso se escondeu
Nada de novo acoteceu
A recompensa ao punho que matou
Uma fortuna a quem roubou
Guarda o teu roubo guarda-o bem
Dentro de um papel a lei

A formiga no carreiro
vinha em sentido contrário
Caiu ao Tejo
ao pé de um septuagenário

Lerpou trepou às tábuas (bis)
que flutuavam nas águas (bis)
e do cimo de uma delas
virou-se para o formigueiro
mudem de rumo (bis)
já lá vem outro carreiro

A formiga no carreiro
vinha em sentido diferente
caiu à rua
no meio de toda a gente

buliu abriu as gâmbeas
para trepar às varandas
e do cimo de uma delas ...

A formiga no carreiro
andava à roda da vida
caiu em cima
de uma espinhela caída

furou furou à brava
numa cova que ali estava
e do cimo de uma delas

Eu fui ver a minha amada
Lá p'rós baixos dum jardim
Dei-lhe uma rosa encarnada
Para se lembrar de mim

Eu fui ver o meu benzinho
Lá p'rós lados dum passal
Dei-lhe o meu lenço de linho
Que é do mais fino bragal

Minha mãe quando eu morrer
Ai chore por quem muito amargou
Para então dizer ao mundo
Ai Deus mo deu Ai Deus mo levou

Eu fui ver uma donzela
Numa barquinha a dormir
Dei-lhe uma colcha de seda
Para nela se cobrir

Eu fui ver uma solteira
Numa salinha a fiar
Dei-lhe uma rosa vermelha
Para de mim se encantar

Minha mãe quando eu morrer
Ai chore por quem muito amargou
Para então dizer ao mundo
Ai Deus mo deu Ai Deus mo levou

Eu fui ver a minha amada
Lá nos campos eu fui ver
Dei-lhe uma rosa encarnada
Para de mim se prender

Verdes prados, verdes campos
Onde está minha paixão
As andorinhas não param
Umas voltam outras não

Minha mãe quando eu morrer
Ai chore por quem muito amargou
Para então dizer ao mundo
Ai Deus mo deu Ai Deus mo levou

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