Por mais forte quem oprime
Treme sempre um regime
Quando chora uma mãe
Foi no porto de Leixões
Estava o barco de saída
Disse adeus em orações
Viu Guilherme de partida
Por alturas do Natal
Fez-se à estrada pelo mar
O seu filho ao Tarrafal
Herculana foi beijar
Por mais forte quem oprime...
Muitos homens encontrou
A cumprir a provação
A todos fotografou
Entre os muros da prisão
Por mais forte quem oprime...
No regresso da viagem
Foi ainda mais além
E as fotos na bagagem
Foi levar de mãe em mãe
Por aqueles que a má sorte
Já levara desta vida
Herculana fez-se forte
Para lhes dar a despedida
Ninguém tem força maior
Ninguém leva a melhor
Quando reza uma mãe
Por mais forte quem oprime
Treme sempre um regime
Quando chora uma mãe
Pousou ramos sobre a terra
Pôs sementes de saudade
Pelos mortos desta guerra
Que foi dar à Liberdade
Herculana, mãe coragem
De viagem outra vez
E de novo na bagagem
Novas fotos que ela fez
Ao seu filho e companheiros
Deu notícias e relatos
Levou para os prisioneiros
As famílias em retratos
No regresso da prisão
Tinha as fotos na bagagem
Que levou de mão em mão
Que levou de mãe em mãe
Como tantos outros antes
Nasceu filha de emigrantes
Numa terra emprestada
Cresceu entre os resistentes
Comunista combatentes
Numa França ocupada
Aprendeu desde bem cedo
O que é viver com medo
Cerrou dentes contra o mal
Já depois da paz firmada
No Partido empenhada
Veio para Portugal
Enjaulada na prisão
Segurava pela mão
Os filhos de olhos fechados
Para não ser roubada
Dos seus filhos tão amados
Tinha novos inimigos
Outras lutas, outros perigos
Mas Albina era guerreira
Fez-se grande pelo povo
Combateu o Estado Novo
E foi feita prisioneira
Por sete anos viu-se presa
Torturada e indefesa
Violência desmedida
E por mais que fosse forte
A Albina deu-se à morte
E pôs fim à sua vida
Enjaulada na prisão...
Não viveu para ver chegar
Esse Abril que a fez lutar
Morreu antes de saber
Que Abril por fim se deu
E que Abril também é seu
Morreu antes de viver
Disse adeus como quem vai
Estar de volta ao fim do dia
Mas nos olhos do meu pai
Eu bem vi que ele sabia
Segui ordens, fui fiel
Compri tudo ao pormenor
Tive que mudar de pele
Em nome de um bem maior
Tive um nome emprestado
Mariana fiquei eu
Outro nome foi guardado
Aquele que a mãe me deu
Remendei as refeições
Com o pouco que havia
Fui cerzindo as solidões
Com o som da telefonia
Vivi noites preenchidas
Por receios e ansiedade
Imprimi às escondidas
Palavras de liberdade
Tive um nome emprestado
Mariana fiquei eu
Outro nome foi guardado
Aquele que a mãe me deu
Fui embora como alguém que não pensa demorar-se
Fiz as malas sem saber quanto tempo ia passar
Quantas vidas ia ter sem tirar o meu disfarce
Se algum dia a minha mãe eu voltaria a abraçar
Tive um nome emprestado...
Fui mulher só de fachada
Para ninguém desconfiar
Não me dei de mão beijada
Mesmo com falta de amar
Com um arma apontada
Mariana que era eu
Ferida e acusada
Não vergou, não se deu
Quando Abril por fim chegou
Voltei para quem me ama
Foi a noite que acabou
Disse adeus à Mariana
Francisco acordou de madrugada
E foi quando ele soube da missão
Meteram-se nos tanques pela estrada
Armados com a fé no capitão
Sabiam-se imortais por serem jovens
Corria-lhes nas veias a vontade
O mundo muda sempre quandos os Homens sonham com a Liberdade
Francisco era mais do que um soldado
Também era a memória do avô
Seguia para deitar abaixo o Estado
O mesmo que Aristides sabotou
Sabiam-se imortais por serem jovens
Corria-lhes nas veias a vontade
O mundo muda sempre quandos os Homens sonham com a Liberdade
Para trás ficou o curso de engenheiro
À espera de outros tempos menos quentes
Tinha à sua frente Abril inteiro
E no sangue o apelido Sousa Mendes
Depois de abrir fronteiras aos judeus
De salvar tantas vidas por um triz
A vida quis que houvesse um dos seus
A salvar o seu país
Foi um dos militares que escoltou
Do Carmo à Pontinha o Presidente
E como alguém que sai ao seu avô
Fez tudo para servir a sua gente
Sabiam-se imortais por serem jovens
Corria-lhes nas veias a vontade
O mundo muda sempre quandos os Homens sonham com a Liberdade
havia uma árvore à beira do caminho.
E havia um buraco naquela árvore
perto de Espinho.(E o povo sabia que havia um buraco
naquela árvore à beira do caminho.)
à procura de um médico em terras de Espinho
ninguém disse nada sobre o homem escondido
naquela árvore à beira do caminho.Esta é uma história que todos sabem
em terras de Espinho.
Esta é a história de uma árvore
à beira do caminho.Era noite cerrada noite negra
era noite de morte no caminho.
E de repente chegaram os embuçados:
procuravam um médico em terras de Espinho.Era noite sem lua noite de emboscada
noite de um homem não andar sozinho.
As bocas fecharam-se ninguém contou nada.
Era noite de embuçados no caminho.Disseram ao povo que havia um ferido.
Mostraram as mãos: seria sangue? Seria vinho?
E ninguém foi chamar o médico escondido
naquela árvore à beira do caminho.Era noite sem lua noite de sangue
era noite de esperas no caminho
embuçados chegaram. Embuçados partiram.
Procuravam um médico em terras de Espinho.Já corre um mensageiro para aquela árvore
à beira do caminho. Há embuçados. Falaram dum ferido.
Mas o sangue que vimos era vinho. Já o médico sai do seu buraco
naquela árvore à beira do caminho.
(ai a noite sem lua
ai o sangue que tem a cor do vinho.)Catorze balas o esperavam
catorze balas o mataram nessa noite em Espinho.
E nunca mais o médico se escondeu
naquela árvore à beira do caminho.Mas todos os anos na mesma noite
em que o sangue correra nessa aldeia de Espinho
mãos invisíveis vinham florir
aquela árvore à beira do caminho.De novo vieram os embuçados
de novo mataram em terras de Espinho.
Quando se foram já não havia
aquela árvore à beira do caminho.Mas no dia seguinte no mesmo sítio
onde o médico se escondia perto de Espinho
as mãos dos pobres vinham plantar
outra árvore à beira do caminho. Manuel Alegre
in "O CANTO E AS ARMAS" - edição de 2017, comemorativa dos 50 anos do livro, revista pelo autor
Comentários
Enviar um comentário