Nas histórias que ela ouvia
Quando tinha pouca idade
Não havia fantasia
Tnham sangue de verdade
Nunca soube de princesas
Mas sim da guerra civil
Em Espanha havia presas
Que eram mortas a fuzil
Nunca digas lá por fora
O que dizes cá em casa
Tem cuidado, minha Aurora
Era o pai que a avisava
Assim ela se fez gente
Com a rádio bem baixinho
Tendo sempre bem presente
Qual seria o seu destino
Foi para o curso de Direito
Peito feito contra o Estado
E aos poucos pôs-se a jeito
Para ser alvo marcado
Pela calada das luas
Quando dormem os chacais
Foi deixando pelas ruas
Frases de ordem em morais
Foi assim levando os dias
Até que chegou a hora
Foi levada para Caxias
Foi detida a Aurora
E com pétalas de pão
Ela fez rosas de trigo
Entre os muros da prisão
Fez das flores um abrigo
Já vos disse que não falo
Não me vão mandar na voz
Porque quanto mais eu calo
É quanto eu falo por nós
Já vos disse que não digo
Nada tenho a dizer
O que sei fica comigo
Doa isso o que doer
Não falou de mão beijada
Calou tudo o que sabia
Mesmo sendo torturada
Só silêncio lhes dizia
Jurou com os seus botões
Que jamais ia chorar
Nem dizer-lhes palavrões
Que se ia controlar
E com pétalas de pão
Ela fez rosas de trigo
Entre os muros da prisão
Fez das flores um abrigo
Não me deixaram dormir
Quiseram-me quebrar
Vi lagartas a fugir
Era a mente a alucinar
Fui espancada até mais não
Humilhada e desmaiei
Queriam ter-me em confissão
Mas não disse e não falei
Tinha Deus por companheiro
O Senhor como aliado
E rezando foi guerreiro
Contra a guerra e contra o Estado
Foi um mestre no ensino
E foi padre de coragem
Entre as linhas do divino
Foi passando a mensagem
Na capela ali do Rato
Deu sermões e com bravura
Fez-se pedra no sapato
No caminho da censura
No papel de sacerdote
Foi fiel aos seus valores
A polícia do chicote
Não o via com amores
Uma igreja de verdade
Só podia bater certo
Ensinando a liberdade
Foi assim o padre Alberto
Pela paz pregou em vida
Porque a fé nunca se cala
Tinha voz que era temida
E morreu com uma bala
E morreu com uma bala...
Como tantos outros antes
Nasceu filha de emigrantes
Numa terra emprestada
Cresceu entre os resistentes
Comunista combatentes
Numa França ocupada
Aprendeu desde bem cedo
O que é viver com medo
Cerrou dentes contra o mal
Já depois da paz firmada
No Partido empenhada
Veio para Portugal
Enjaulada na prisão
Segurava pela mão
Os filhos de olhos fechados
Para não ser roubada
Dos seus filhos tão amados
Tinha novos inimigos
Outras lutas, outros perigos
Mas Albina era guerreira
Fez-se grande pelo povo
Combateu o Estado Novo
E foi feita prisioneira
Por sete anos viu-se presa
Torturada e indefesa
Violência desmedida
E por mais que fosse forte
A Albina deu-se à morte
E pôs fim à sua vida
Enjaulada na prisão...
Não viveu para ver chegar
Esse Abril que a fez lutar
Morreu antes de saber
Que Abril por fim se deu
E que Abril também é seu
Morreu antes de viver
Disse adeus como quem vai
Estar de volta ao fim do dia
Mas nos olhos do meu pai
Eu bem vi que ele sabia
Segui ordens, fui fiel
Compri tudo ao pormenor
Tive que mudar de pele
Em nome de um bem maior
Tive um nome emprestado
Mariana fiquei eu
Outro nome foi guardado
Aquele que a mãe me deu
Remendei as refeições
Com o pouco que havia
Fui cerzindo as solidões
Com o som da telefonia
Vivi noites preenchidas
Por receios e ansiedade
Imprimi às escondidas
Palavras de liberdade
Tive um nome emprestado
Mariana fiquei eu
Outro nome foi guardado
Aquele que a mãe me deu
Fui embora como alguém que não pensa demorar-se
Fiz as malas sem saber quanto tempo ia passar
Quantas vidas ia ter sem tirar o meu disfarce
Se algum dia a minha mãe eu voltaria a abraçar
Tive um nome emprestado...
Fui mulher só de fachada
Para ninguém desconfiar
Não me dei de mão beijada
Mesmo com falta de amar
Com um arma apontada
Mariana que era eu
Ferida e acusada
Não vergou, não se deu
Quando Abril por fim chegou
Voltei para quem me ama
Foi a noite que acabou
Disse adeus à Mariana
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